quarta-feira, 13 de julho de 2011

Rosa vermelha em quarto escuro

"Antes de abrir os olhos tenta avaliar o seu estado de alma...

...sabe que atravessou uma fronteira mas não sabe dizer qual. Se alguém lhe perguntasse faria um esforço e talvez encontrasse não a resposta certa mas uma possivel que calasse a pergunta.

... a sua vida parece-lhe a de uma outra pessoa. Talvez seja isso. Não poder reconhecer-se por completo no que faz, diz, deseja. Uma crescente discrepância. Como se a sua verdadeira vida se tivesse despegado da vida que leva e, com o tempo, a distância entre elas fosse aumentando e a reconciliação se tornasse cada vez mais improvável.

... se fosse possível escolher nunca teria sonhos. Não gosta de ser iludida.

...Deus criou o mundo porque gosta de histórias. Julga lembrar-se de ter lido esta frase em algum lado. Não se lembra onde... "

In Rosa vermelha em quarto escuro de Pedro Paixão


A história de cada vida é sempre muito diferente do que se vê ou se julga alguma vez saber, e nunca será o que se sonhou. Seja isso bom ou mau.

domingo, 10 de julho de 2011

Degredo no sul

" quando te escavaram o ventre encontraram traços adormecidos doutros povos
enigmáticos colares, pérolas corroídas, aços imutáveis, escritas duma outra idade, vestígios de insones navegações

da terra sobe um murmúrio de húmido coração
os vermes vão tecendo a recordação dos mortos para que possamos sobreviver ao estrondo da pólvora e da dinamite
as máquinas quase destruíram as torres de uma cidade imaginada, submersa, inacessível, que eu suspeito ter sido construida com vento-suão
mas, é o negro ouro que atravessa os teus metálicos intestinos
com eles vais refinando a morte das aves e esquecendo a vida dos peixes
digo, das águas enfurecidas irromperá o desastre

se por qualquer razão te esfaquearem de novo, nada mais encontrarão que pequeníssimos cadáveres de saudade
ouço o resfolegar de remorsos náufragos...lembro-me das pedras mortas dos teus pulsos
o peito rasga-se-me, uma lata de óleo trabalha o sangue

no céu terei sempre um pedaço de lua de açucar, e uma estrela para iluminar teu rosto árabe antigo


MAR-DE-LEVA
in Degredo no sul , poeta Al Berto


Encontrei-o numa prateleira meio abandonado, não o conhecia, não me lembro de ter ouvido falar nele antes. Acho que foi a fotografia da capa que me chamou a atenção, e o nome: degredo no sul - ao sul vai-se em busca da festa do verão, da liberdade das férias, não de um degredo. Impressionou-me o sentimento com que imaginava o que vivia. Tanto que quase me deixa sem palavras, porque só as suas já chegam para descrever tudo o que um ser humano vê, sente e imagina . Tudo o que vive sentindo ou imagina que sente, vivendo. Impressionante e imprescíndivel.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar ?

" - Vai-te embora
pelas folhitas dos lábios enquanto galopavam cavalos que uma outra irmã garantia, a pateta, fazerem sombra no mar quando nem a noite faz, aí está o mar intacto e quanto aos cavalos mesmo na terra quem os sente, o que se sente são calhaus e raízes, não me falem dos defuntos a tornarem-se giz , o meu pai giz, a minha irmã Rita giz, o bisavô Marques giz, a minha mãe não tarda muito
( uma volta do ponteiro dos minutos)
giz, tão inteligente para umas coisas e tão estúpido para outras e eu já estúpido palavra, só estúpido, tornado sentimental e fraco pelo correr do tempo, um velho aos quarenta anos com vísceras que se arrastam numa ilusão de vida, não trabalham, duram, não segregam, aguentam-se, o fígado a lamentar-se coxeando, unhas ainda claro, demasiadas bexigas
( cinco?)
a dificultarem-me o sono, o nosso irmão Francisco pior que nós num lugar que não se descobre nos mapas (...)
- Francisco
sem me ralhar, desculpe a opinião mas devia ter-se ocupado da gente senhor
( não estou zangado garanto, cessei de me zangar sabia?)
mandar à fava o dezassete, não nos jogar na roleta e talvez continuássemos neste sítio onde a minha mãe a morrer e é impossivel que não oiça as pessoas na praça ( ... )

Se tivesse de falar no pior que me aconteceu na vida não mencionava a doença nem os rapazes que à medida que crescem troçam dos diminutivos da minha ternura não me consentindo beijá-los, deixam-me no parque sem roupa nem dinheiro e eu
- Como volto para casa?
no receio que a policia ou a manhã me descubram, os arbustos já não escuros, cor de leite que pinga, os pássaros húmidos nas árvores húmidas reaprendendo quem eram porque ao dormir esquecemo-nos e ao acordar
- Sou eu?
a lâmpada do restaurante apagada
( ao apagar-se não existe)
e a cidade a pouco e pouco em torno, os telhados e as chaminés suspensos das nuvens, as paredes depois, essas sólidas, o primeiro táxi rente ao passeio ( ... )
- Volto para casa como?
em busca dos restos dos mendigos, serapilheiras, cartões, tiras de jornal que me cubram, não zangado com os rapazes, grato porque ao despirem-me lhes senti os dedos que embora aleijando-me se demoraram em mim e insultos que me estremeceram de amor, eu um búfalo a quem os cachorros do mato mordem as pernas e ao ajoelhar dentes na garganta rasgando-me de prazer ao despirem-me, matam-me e alegro-me que me matem, três, cinco, dez rapazes sacudindo-me
- Façam-me mal
antes de esquecer quem era... "
In Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar ? - António Lobo Antunes

Quantas mentes, quantas dores, quantas vidas, cabem dentro da imaginação de um homem?