quinta-feira, 7 de julho de 2011

Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar ?

" - Vai-te embora
pelas folhitas dos lábios enquanto galopavam cavalos que uma outra irmã garantia, a pateta, fazerem sombra no mar quando nem a noite faz, aí está o mar intacto e quanto aos cavalos mesmo na terra quem os sente, o que se sente são calhaus e raízes, não me falem dos defuntos a tornarem-se giz , o meu pai giz, a minha irmã Rita giz, o bisavô Marques giz, a minha mãe não tarda muito
( uma volta do ponteiro dos minutos)
giz, tão inteligente para umas coisas e tão estúpido para outras e eu já estúpido palavra, só estúpido, tornado sentimental e fraco pelo correr do tempo, um velho aos quarenta anos com vísceras que se arrastam numa ilusão de vida, não trabalham, duram, não segregam, aguentam-se, o fígado a lamentar-se coxeando, unhas ainda claro, demasiadas bexigas
( cinco?)
a dificultarem-me o sono, o nosso irmão Francisco pior que nós num lugar que não se descobre nos mapas (...)
- Francisco
sem me ralhar, desculpe a opinião mas devia ter-se ocupado da gente senhor
( não estou zangado garanto, cessei de me zangar sabia?)
mandar à fava o dezassete, não nos jogar na roleta e talvez continuássemos neste sítio onde a minha mãe a morrer e é impossivel que não oiça as pessoas na praça ( ... )

Se tivesse de falar no pior que me aconteceu na vida não mencionava a doença nem os rapazes que à medida que crescem troçam dos diminutivos da minha ternura não me consentindo beijá-los, deixam-me no parque sem roupa nem dinheiro e eu
- Como volto para casa?
no receio que a policia ou a manhã me descubram, os arbustos já não escuros, cor de leite que pinga, os pássaros húmidos nas árvores húmidas reaprendendo quem eram porque ao dormir esquecemo-nos e ao acordar
- Sou eu?
a lâmpada do restaurante apagada
( ao apagar-se não existe)
e a cidade a pouco e pouco em torno, os telhados e as chaminés suspensos das nuvens, as paredes depois, essas sólidas, o primeiro táxi rente ao passeio ( ... )
- Volto para casa como?
em busca dos restos dos mendigos, serapilheiras, cartões, tiras de jornal que me cubram, não zangado com os rapazes, grato porque ao despirem-me lhes senti os dedos que embora aleijando-me se demoraram em mim e insultos que me estremeceram de amor, eu um búfalo a quem os cachorros do mato mordem as pernas e ao ajoelhar dentes na garganta rasgando-me de prazer ao despirem-me, matam-me e alegro-me que me matem, três, cinco, dez rapazes sacudindo-me
- Façam-me mal
antes de esquecer quem era... "
In Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar ? - António Lobo Antunes

Quantas mentes, quantas dores, quantas vidas, cabem dentro da imaginação de um homem?

2 comentários:

  1. Sabes o que acho ? Que é preciso uma grande dose de paciência, vontade e sobretudo muita concentração, para conseguir ler o que esse homem escreve . Mas é apenas a minha opinião

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  2. Olá Raquel :

    Antes de mais ...parabéns pelo blogue ! :)

    gostei do que li ...

    Gostaríamos muito que desse uma vista de olhos no projecto DVB- Digital Video Book ,de saber a sua opinião e qual o interesse em desenvolver o seu trabalho neste novo formato.

    "Transformamos" os seus trabalhos (já editados em livro, ou não), num DVB- uma ideia original da Pastelaria Studios Productions

    O projecto é recente, é uma inovação, tal como explicamos no nosso blogue:

    http://pastelariaestudios.blogspot.com/


    É exactamente isso! os seus poemas seriam " trabalhados " em DVB . Um livro que se vê como um filme!


    Não se trata do mesmo funcionamento de uma editora "normal", pois não somos uma editora e prestamos essencialmente um serviço criativo.

    A minha sugestão seria, enviar-nos a sua obra, e nós faremos uma análise e um orçamento de custos.

    Posso adiantar que, por ser um projecto novo e, embora o trabalho criativo (audio, voz, imagem, construção do DVB, etc) seja bastante, queremos chegar ao maior número de autores de obras escritas, mesmo que essas estejam ainda na 'gaveta' ...



    Fico a aguardar uma resposta e, qualquer dúvida ...estamos por aqui.

    Um abraço,

    pastelariaestudios@gmail.com

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